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Quem é Padre Júlio Lancellotti, a linha de frente contra negligência social?

Quem é Padre Júlio Lancellotti

Para contar a história de vida do Padre Júlio Lancellotti, buscamos alguns valores intangíveis que o tornam a primeira linha de batalha contra a negligência social. Resultou em um dos episódios mais bonitos do Foras de Série.

A verdade é que Júlio Lancellotti é um cristão que está ao lado da fé, não da instituição. Um homem que dialoga com o sincretismo e com as minorias esquecidas. Como ele mesmo afirma: “estou do lado que Jesus queria que eu estivesse”.

É complicado colocá-lo como defensor dos direitos humanos. Para o pároco, é premissa básica. Estamos todos no mesmo oceano, mesmo que em barcos diferentes. É de uma fé inabalável que naturaliza a mão para o outro, independente de quem seja.

 Pessoas assim incomodam. Incomodam aqueles cujos valores são os mesmos na teoria, mas na prática são totalmente diferentes. As premissas cristãs do Padre Júlio Lancellotti não possuem distinção: segue alteridade, caridade e um pouco mais de honra aos vulneráveis.

Vulneráveis que a grande família brasileira faz questão de colocar um cabresto e ignorar, ao mesmo ponto que vão ao templo sagrado de seu Deus e oram por dias melhores. Dias melhores para quem? Querem tomar tudo para si?

Para ser essa a lógica que Padre Júlio Lancellotti combate – e é quase apedrejado por isso, tal qual o messias que as pessoas seguem os preceitos.

Mas afinal, quem é Júlio Lancellotti? Qual sua história? O que moldou seus valores? 

O começo da trajetória de Padre Júlio Lancellotti

1960 é o ano que marca a entrada de Júlio Lancellotti, residente do Tatuapé, no seminário. O bairro vibrava: futebol maluco, chutes no portão e pedras que quebravam vidraças marcavam um menino agitado e espoleta. 

Fizeram até enxoval para colocar o menino, de então 12 anos, logo no seminário cristão.

Em Araraquara, atrás dos ensinamentos de Deus, descobriu o contrário do pé na rua: rigidez e castigo físico. Qualquer palavra fora do roteiro, era uma vara de bambu nas mãos. Ao rir fora de hora, tomava um belo de um orelhão. Ardia o rosto inteiro, relata. Era humilhado ao ponto de assistir às aulas ajoelhado. 

A metodologia do seminário não condizia com o espírito libertário do pré-adolescente Júlio. Com as férias, queria tudo, menos ser padre. A alegria da vizinhança durou menos de um ano.

Se afastou da rotina do seminário, mas continuou a frequentar a paróquia, por incrível que pareça. Tinha afeto pela irmã Inezita, que não lhe tratava como um bagunceiro e má influência da família.

Só com o estímulo, e um pouco da rigidez do seminário, aprendeu a responder à missa em latim só para agradar Inezita. Acabou como coroinha. Passou a gostar de estudar e tinha uma queda pela poesia.

Terminou o colegial, ainda com o desejo de ser padre. Uma nova tentativa: entrou para o seminário dos agostinianos. Os três primeiros anos foram tranquilos e ele estudou grego, latim, francês, inglês e enfermagem.

No ano de 1968, um novo padre assumiu as rédeas do seminário o qual Júlio participava. Noviço e enfermeiro, acabou afastado da função, para aprender a educar a vontade e renunciar ao desejo. O novo padre também impôs silêncio e isolamento. 

Livros, apenas os devocionais. Júlio foi mais uma vez expulso por não se adequar à doutrina. Ele diz que até hoje a Igreja Católica é o maior foco de resistência à sua atuação. “Os grupos que mais me atingem são de dentro da Igreja”.

Questões existenciais, a realidade e a reconexão

Aos 19, prestes a vislumbrar a expansão da vida, Júlio estava decidido a abandonar o ofício religioso, até porque, para ele, não acreditava ser uma vocação ou um posto acólito dos selecionados por Deus.

Acreditava no caráter intangível da coisa, bem fundamentado na fé, das escolhas existenciais, em momentos da vida cuja jornada faz sentido. Aquelas janelas que se abrem para nunca mais se fecharem.

Aquele não era um desses momentos. Foi então estudar pedagogia e lecionar. Tinha um foco específico no aprendizado de crianças e jovens, de forma bem lúdica. Tinha métodos específicos e, não raro, saía com seus alunos em expedições a campo.

Os caminhos da vida o levaram ao Serviço Social de Menores e, posteriormente, ao Reformatório Modelo de Menores. Sempre esbarrou com os problemas do aparato de segurança pública. 

O Júlio invocado do Tatuapé levantou a voz e denunciou violência e corrupção. O Brasil vivia sob ditadura e ele engrossava as manifestações da oposição. Era uma situação que absolutamente sugava suas energias.

Esse é o ponto que o reconecta com o Júlio cristão. Foi mero acaso ou vontade divina que o colocou em contato com alguns padres que compartilhavam de sua mesma visão. Padres que encabeçaram a luta contra o regime militar e tinham suas missões nas periferias com os grupos mais vulneráveis.

A assistente social do Reformatório Modelo de Menores, que à época Júlio Lancellotti tinha a cadeira de diretor, integrava a Pastoral do Menor. Sugeriu que conhecesse o trabalho e o apresentou ao arcebispo responsável, Dom Luciano. Houve uma identificação, os propósitos eram os mesmos e Júlio migrou para a Pastoral.

Dom Luciano sugere alguns anos depois que Júlio voltasse ao seminário. As circunstâncias eram diferentes dessa vez. “Acreditava no caráter intangível da coisa, bem fundamentado na fé, das escolhas existenciais, em momentos da vida cuja jornada faz sentido. Aquelas janelas que se abrem para nunca mais se fecharem.”

Pela terceira vez, tentou se tornar padre. Júlio namorava e possuía uma visão fundamentada na Teologia da Libertação. Aderir ao grupo do arcebispo de São Paulo significou respaldo a sua visão de mundo e reservas de setores da igreja.

Valores cristãos contra a própria Igreja Católica

Setores da sociedade de São Paulo passaram a ter objeções às ações da pastoral. Afinal, quem defende preto, pobre e travesti deve ter intenções maquiadas por detrás, certo? 

O cidadão de bem não consegue conceber a ideia de que o valor da alteridade exista e que há pessoas que realmente lutam pelos outros tal qual luta pelos seus próprios objetivos. 

Que estende a mão para alguém que está na rua, tal qual estende a mão para a mãe que está dentro de casa. Que o discurso não é panfletário e vazio, da boca para a fora. É difícil conceber a ideia de que caridade é estímulo contra a vulnerabilidade sistemática e incessavelmente violenta.

E esse sempre foi o trabalho da Pastoral do Menor. Questões sobre direitos humanos e meritocracia sempre permearam uma polarização gigantesca entre as diferentes camadas da nossa sociedade. Quem atua na linha de frente, é o primeiro a sofrer a bala.

Padre Júlio Lancellotti já teve que presenciar funcionários do IML se recusarem a limpar e vestir um “trombadinha”. Ninguém aceitava receber o velório. Sabe a obscuridade que vem das profundezas marginais da rua.

E são esses que precisam de ajuda. Não alguém vestido de terno em cima de um palanque pedindo dinheiro em troca de salvação com uma máquina de cartão de crédito. Devotos são aqueles que não negligenciam as mazelas do nosso mundo.

Os que buscam, dentro de suas próprias intangibilidades, encontrar sentido no contato espiritual e na troca com o próximo. Aumente o raio de distância dessa proximidade, tire o cabresto e se permita ver o que está acontecendo com a sociedade.

Padre Júlio Lancellotti é a primeira linha de batalha contra a negligência social sistemática que parece não ter cura. Mas andar com fé, ele anda, porque a fé não costuma falhar. E faz mais do que muita gente que está sentada em seu apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte acólita chegar.

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