A trajetória de Viola Davis possui cicatrizes ancestrais. É a trajetória contra todas as expectativas. Consagrada, estampada, vocalizada. Nesse mundo que vivemos hoje não existe mais espaço para o qual Viola nascera na Carolina do Sul, Estados Unidos. Segregada, racista, sexista.
A atriz cresceu em uma antiga fazenda de escravos, sem direito sequer à água potável. Urinou na cama até os 14 anos de idade, sem razão fisiológica diagnosticada. Cicatrizes dessa vida e de talvez vidas passadas. Dentro de casa, conviveu entre ratos, violência e a fome. Fora de casa, com uma sociedade doente, ainda mais imprevisível e agressiva.
A Viola Davis consagrada pela tríplice coroa da atuação – Oscar, Emmy e Tony, premiações do cinema, TV e teatro, respectivamente -, é daquelas personagens cuja história de sucessivas barbáries contra suas chances na vida é retrovisor de uma grandeza que o legado hoje faz com que nesse mundo que vivemos não exista mais espaço para a realidade que lhe fora oferecida.
É preciso contar, mas não limitá-la ao papel da superação. Viola é mais do que isso. É dessa construção de dualidades que vem a potência da atriz.
A trajetória de Viola Davis até a consagração
Talvez o marco que mostre o poder de Viola para o mundo não tenha durado muito. Mas o suficiente. Em 2008, contracenou com Meryl Streep em “Dúvida”, aos 43 anos de idade. Foram necessários apenas 8 minutos em cena para que ela conquistasse uma indicação ao prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante no Oscar.
Viola conquistou um currículo invejável desde então. A trajetória, entretanto, foi escrita pelas linhas tortas que vestem o destino de uma mulher negra em uma sociedade segregada. “Faço isso porque acho que a pobreza envolve muita vergonha. Que você não seria pobre se fizesse a coisa certa. Quando você é pobre é isso que passa pela sua mente. Não é apenas um estado financeiro. É um estado de invisibilidade. É um estado de inutilidade”, já chegou a vocalizar ao programa 60 minutes.
O caminho com o qual Viola encontrou um caminho para se expressar foi o teatro. Estudou na Rhode Island College e, depois de alguns anos no cenário independente, conseguiu uma bolsa de estudos na prestigiada Juilliard.
Seu papel de estreia na Broadway foi em 1996, com o espetáculo “Seven Guitars”, do dramaturgo August Wilson. A peça recapitulava os passos de Floyd, um guitarrista de blues, negro, que estava prestes a assinar um contrato antes de ser morto.
As personagens de Wilson continuaram marcando a vida de Viola nos anos que seguiram. Em 2001, em um desses papéis, foi prestigiada com seu primeiro Tony Awards, a maior premiação do teatro, pela peça “King Hedley II”. Até sua estreia nas telas, foi um longo caminho em cima dos palcos.
“Dúvida” foi para não restar mais nenhuma. Os 8 minutos do 8ª ano do segundo milênio. Para entrar na história e rendê-la, logo em sua estreia, uma indicação à maior premiação do cinema, depois de já ter conquistado a maior premiação do teatro.
Em 2010, recebeu o seu segundo Tony Award de Melhor Atriz Principal pela performance em “Um Limite Entre Nós” (1983), peça vencedora do Prêmio Pulitzer de Teatro de August Wilson, na Broadway. Curiosamente, foi ela também a responsável pela conquista do Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante pela adaptação ao cinema em 2016.
Em 2012, ela foi indicada pela segunda vez ao Oscar de Melhor Atriz, dessa vez com o filme “Histórias Cruzadas”. Em 2014, surge o papel que coloca uma cadeira cativa bordada de Viola Davis no coração do público: o da advogada criminal na série “How To Get Away With Murder”, produzida por Shonda Rhimes. A série lhe rendeu o Emmy de Melhor Atriz em 2015, um ano antes da consagração da tríplice coroa em 2016, com “Um Limite Entre Nós”.
Davis fez história ao se tornar a primeira mulher negra a levar a estatueta. A importância desse momento e o absurdo de não ter acontecido antes foram destacados pela atriz num discurso histórico: “A única coisa que separa as mulheres negras de qualquer outra pessoa é oportunidade. Você não pode ganhar um Emmy por papéis que simplesmente não existem. Obrigada a estas mulheres que ajudaram a redefinir o que significa ser bonita, ser sexy, ser uma mulher protagonista, ser negra”
Em 2021, Viola retornou ao Oscar indicada como Melhor Atriz por interpretar Gertrude Rainey, uma das primeiras cantoras do blues a ser gravada, em “A Voz Suprema do Blues”, mais uma adaptação da peça de August Wilson.
No total, entre Oscar, BAFTA, Emmy, Globo de Ouro, SAG Awards, People’s Choice Awards, foram 29 indicações e 10 estatuetas. Com quase 30 anos de carreira, decidiu não aguardar mais Hollywood te entregar.
Começou a entregar ao mundo. Ao lado do marido, criou a JuVee Productions, produtora independente, que busca promover histórias a partir de “uma ampla gama de vozes emergentes”, trazendo à luz discussões sobre raça e proporcionando maiores oportunidades no teatro e no cinema.
O poder da representatividade de Viola Davis
Viola está em constante ação estratégica para que outras mulheres negras não precisem percorrer uma via-crúcis na tentativa de melhorar de vida. É mulher, independente e tem uma trajetória marcada por superação. Não veste a capa do vitimismo: pega suas virtudes e as escancara para o mundo. Tentaram de todas as formas silenciá-la. Ou melhor, por muito tempo nem deram ouvidos.
E quando ela tentou se fazer ouvida, a excluíram. Clássico mecanismo social. Fator de identificação. Não ser ouvida. Citando Racionais: “por você ser preto, você precisa ser 2 vezes melhor, mas como fazer 2 vezes melhor se você está pelo menos 100 vezes atrasado, pela escravidão, pela história, pelo preconceito, pelos traumas. 2 vezes melhor como?”.
Viola não é nenhuma heroína e reconhece suas vulnerabilidades. É um pouco do que todos queremos ser. Nos identificamos com Viola porque ela é aquilo que mostra, que expressa para o mundo. Vivemos em tempos cada vez mais incertos (com menos previsibilidade e mais dificuldade de planejar algo com assertividade) e mais complexos e voláteis (o ritmo de nossa sociedade é veloz e as mudanças são mais bruscas do que antigamente).
Nesse cenário, faz-se necessária, a todo o momento, nossa capacidade de criar, recriar e cocriar, respondendo ao mundo externo de uma forma mais atenta e sensível.
Por isso que é tão importante tentar desmistificar a falha, o fracasso. Vai doer, não tire isso do jogo. E cada um tem seu tempo para processar o que isso significa. Nada mais justo.
De todo fracasso ou conquista vem um aprendizado. Da conquista, os grandes nomes do esporte, como Michael Jordan e Pelé, dizem que é o alívio. Do fracasso, a capacidade da mutação, da reflexão interna, de se olhar um pouco mais analiticamente – hábito que as pessoas deveriam praticar mais.
Ouse. Vença a desconfiança.
Você deve entender que você não precisa sofrer nem sobreviver e, sim, tem o direito à escolha, direito a escolher uma maneira de viver bem primeiramente consigo, com seus limites, com seu tempo, com o que realmente importa para você e com pessoas ao seu redor dispostas a cobrirem tua retaguarda quando for preciso.